Resposta dada pelo então cônego, José Luiz Villac
Resposta - O autor da pergunta faz bem em colocar a questão no campo da alteração dos costumes, porque o aspecto da imoralidade dos trajes é de si tão evidente que dispensaria qualquer comentário. Em todo caso, como hoje até os pontos mais óbvios deixaram de sê-lo, convém dizer aqui uma palavra de esclarecimento sobre o assunto.
Quando vamos a uma igreja, e portanto vamos nos apresentar de modo muito especial diante de Deus, para prestar-Lhe nossas homenagens (nosso culto), ou para pedir-Lhe graças, é claro que não podemos estar vestidos de modo oposto aos princípios de moralidade por Ele estabelecidos já no Paraíso Terrestre, quando velou a nudez de nossos primeiros pais, vestindo-os com túnicas de peles (Gn 3, 21). E também nos Mandamentos da Lei de Deus (o 6º, “não pecar contra a castidade”, e o 9º, “não desejar a mulher do próximo”). E ainda às normas concretas introduzidas pela Igreja, consignadas em todos os Tratados de Teologia Moral que, ao abordar a virtude da Castidade e o 6º Mandamento, determinam em que medida certas partes do corpo devem ser veladas pelo traje e não expostas em razão do estímulo que exercem sobre a sensualidade.
Mas o problema hoje deve ser visto dentro de um panorama mais vasto: não são apenas os indivíduos isolados que desrespeitam as normas da Igreja, mas é toda uma sociedade que perdeu a noção do sacral (sagrado) e está imersa numa atmosfera de secularismo, da qual Deus está parcial ou totalmente ausente ou, mais precisamente, da qual foi expulso!
Expliquemos melhor o sentido de secularismo. Esta palavra deriva obviamente de século, e é tomada aqui no sentido de o presente século (o mundo atual), por oposição ao século futuro, que é a vida eterna no Céu. É contra os princípios, as normas e os costumes deste século que São Paulo nos advertia ao dizer: “Não vos conformeis a este século” (Rom 12, 2). Isto é, não modeleis vossa vida, vosso modo de proceder, de vestir etc., segundo os princípios deste século (deste mundo), que são opostos aos princípios de Deus. É a contraposição que, com outras palavras, Santo Agostinho estabelece entre cidade terrena e cidade celeste.
Isto sempre foi assim, e assim será até o fim do mundo. Mas a expansão dos princípios do Evangelho pode fazer recuar os limites da cidade terrena e dilatar as fronteiras da cidade celeste. Ou seja, fazer com que, na prática de todosos dias -- dos povos como dos indivíduos – os princípios católicos sejam mais amados e seguidos.
À pergunta, pois, se “houve alguma norma da Igreja permitindo essa mudança” deve-se responder que, independente de algum Bispo ou sacerdote que abriu as portas da sua igreja para gente vestida como o consulente descreve, o que houve foi uma invasão tempestuosa dos ventos do secularismo dentro do recinto das igrejas! Sem pedir licença, com a licença ou contra a licença dos responsáveis por nossas igrejas! A cidade terrena - secularizada - dilatou suas fronteiras e invadiu até os limites da cidade celeste. A imoralidade entrou galopante.
De modo que, para consertar tal situação, não bastará revigorar as normas sabiamente emitidas pelas autoridades eclesiásticas de outrora. É preciso banir, teórica e praticamente, os princípios e as normas de conduta impostas pelo secularismo. O que equivale a dizer que é preciso impregnar novamente toda a sociedade com os princípios do Evangelho e recolocar Jesus Cristo e sua Igreja no centro de todas as coisas.
O que não se conseguirá sem um árduo combate dos que permanecerem fiéis aos ensinamentos da Santa Igreja. Mas sobretudo não se conseguirá sem uma intervenção especial da Providência nos acontecimentos humanos, chamando os homens à razão - eventualmente com o desencadeamento de castigos sobre a humanidade prevaricadora - e abrindo os seus corações à ação da graça divina, por meio de uma atuação potentíssima de Nossa Senhora, Medianeira de todas as graças. Sobre como isso possa ocorrer, a Mensagem de Fátima traz esclarecimentos muito confortadores.
Pergunta - O Sr. poderia explicar o que vem a ser a atual crise na Igreja? A Igreja já não passou por situações semelhantes em outras ocasiões, por exemplo quando houve o Cisma do Oriente? Com o Renascimento etc.
Resposta – Às vezes por ingenuidade ou por otimismo somos levados a imaginar a Santa Igreja de modo diferente de como seu Fundador, Nosso Senhor Jesus Cristo, A instituiu. Ele A estabeleceu como torre inamovível sobre a rocha de Pedro, mas sujeita a toda espécie de ventos e tempestades.
Posta a questão nestes termos, a descrição ainda está incompleta, pois a metáfora dos ventos e tempestades faz pensar em agentes externos que investem sobre a Igreja, produzindo estragos em suas muralhas exteriores, mas sem conseguir movê-la de seus fundamentos. Isto é verdade, mas é verdade também que Jesus Cristo permitiu, por desígnios insondáveis, que dentro da torre os ventos provocassem igualmente devastações...
Passando das metáforas aos fatos, basta pensar, logo na Igreja primitiva, na corrente dos judaizantes, que pretendia impor a todos os pagãos convertidos os usos e costumes da antiga lei mosaica. A fricção se manifestou em lances árduos, como foi a resistência de São Paulo contra São Pedro, quando este último, pressionado pelos judaizantes, teve a debilidade de contemporizar com as práticas judaicas, contrariamente ao que fora resolvido no Concílio de Jerusalém.
O problema, portanto, das crises internas na Igreja é de todos os tempos, e afeta até personalidades das mais eminentes, produzindo às vezes entrechoques inclusive entre santos, como no caso de São Pedro e São Paulo, que acaba de ser citado. Nada disto nos deve escandalizar, mas para tal é preciso termos a seriedade de espírito de considerar que vivemos num vale de lágrimas, num campo de provas, onde toda espécie de obstáculos inesperados se erguem à nossa frente, exigindo que os enfrentemos para demonstrar nossa fidelidade a Jesus Cristo e à sua Igreja.
Toda a História da Igreja está cheia desses lances e a sua narração enche volumes e volumes. Passando por cima das crises mencionadas pelo consulente – o Cisma do Oriente, o Renascimento –, abordemos diretamente a atual crise da Igreja, objeto primeiro da pergunta em foco.
Como foi explicado na resposta à pergunta anterior, a atual crise da Igreja está diretamente relacionada com o processo de secularização que, a partir da decadência da Idade Média, afeta toda a sociedade ocidental, minando os fundamentos da civilização cristã e marginalizando a Igreja do centro dos acontecimentos humanos. Ela que é a Mestra da humanidade, e em certo sentido também sua Mãe, pois é através dEla – e só dEla – que Nosso Senhor Jesus Cristo estabelece Seu Reino na Terra. “Reino de Verdade e de Vida, reino de santidade e de graça, reino de justiça, de amor e de paz” (Prefácio da Missa de Cristo Rei).
Face a esse processo de secularização, duas espécies de mentalidade se confrontam internamente na Igreja: a primeira é a dos que querem fazer uma composição com o mundo, e preconizam que a Igreja deve se conformar com a realidade de uma sociedade pluralista, aceitando de conviver lado a lado, sem privilégios especiais, com outras instituições religiosas ou laicas de quaisquer concepções doutrinárias. Nesta corrente, não poucos vão além, e chegam até a propugnar que a Igreja abandone suas concepções, que eles consideram “ultrapassadas”, e adote sem rodeios as posições dominantes no mundo secularizado, como o divórcio, o uso de anticoncepcionais, as experiências com embriões humanos, o aborto, a eutanásia, a prática do homossexualismo etc. Tratar-se-ia portanto de uma capitulação incondicional da Igreja diante dos erros do mundo moderno.
É bem de ver que a outra família de almas preconiza o oposto, isto é, uma resistência da Igreja a esses erros, e uma fidelidade à outrance aos princípios recebidos de seu Divino Fundador. O entrechoque entre as duas famílias de almas é pois total, inevitável, inconciliável.
Pela radicalidade das posições assumidas, pela amplidão dos campos que abarca, pelas conseqüências profundas das teses propugnadas - que não fizemos senão descrever simplificadamente - não é exagerado afirmar que a atual crise na Igreja é a mais grave, dentre as tão graves, que Ela sofreu ao longo de sua história bimilenar.
Mas sobre a Igreja paira a promessa de Seu Divino Fundador: “As portas do Inferno não prevalecerão contra ela” (Mt 16,18).
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